Este livro é etnografia e alegoria.
Carlos Castaneda, sob a orientação de Dom Juan, nos conduz por aquele momento no crepúsculo, por aquela fresta no universo que há entre o claro e o escuro, para um mundo que não é apenas diferente do nosso, mas também de uma ordem de realidade inteiramente diferente. A fim de alcança-lo ele teve o auxílio de mescalito, yerba del diablo e humitopeiote, datara e cogumelos. Mas esta não é uma simples narrativa de experiências alucinógenas, pois as sutis manipulações de Dom Juan conduzem o viajante enquanto suas interpretações dão significado aos fatos que nós, através do aprendiz de feiticeiro, temos a oportunidade de experimentar.
Os antropólogos nos ensinam que o mundo tem definições diversas em diversos lugares. Não é só que os povos tenham costumes diferentes: não é só que os povos acreditem em deuses diferentes e esperem diferentes destinos após a morte. É, antes, que os mundos de povos diferentes têm formas diferentes. Os próprios pressupostos metafísicos variam: o espaço não se conforma com a geometria euclidiana, o tempo não constitui um fluxo contínuo de sentido único, as causas não se conformam com a lógica aristotélica, o homem não se diferencia do não-homem nem a vida da morte, como no nosso mundo.
Conhecemos alguma coisa da forma desses outros mundos pela lógica dos idiomas nativos e pelos mitos e cerimônias, conforme registrados pelos antropólogos. Dom Juan nos mostrou uns vislumbres do mundo de um feiticeiro yaqui, e como o vemos sob a influência de substâncias alucinógenas, nós os captamos com uma realidade totalmente diversa daquelas outras fontes. Nisso reside a principal virtude desta obra.
Castaneda afirma, com razão, que este mundo, com todas as suas diferenças de percepção, tem sua lógica interna. Ele procurou explicar isso do interior, pode-se dizer de dentro de suai experiências ricas e intensamente pessoais, quando sob a tutela de Dom Juan em vez de examiná-lo nos termos de nossa lógica. O fato de ele não conseguir nisso um êxito total deve-se a uma limitação que nossa cultura e nossa língua impõem sobre a percepção, e não a sua limitação pessoal; no entanto, em seus esforços ele une para nós o mundo de um feiticeiro yaqui com o nosso, o mundo da realidade não ordinária com o mundo da realidade ordinária.
A importância primordial de entrar em mundos outros que não os nossos - e, pois, da própria antropologia - reside no fato de que essa experiência nos leva a compreender que o nosso próprio mundo é também um complexo cultural.
Daí a alegoria, bem como a etnografia. A sabedoria e a poesia de Dom Juan, e a habilidade e poesia de seu escriba, nos dão uma visão de nós e da realidade.
Como em todas as boas alegorias, o que se vê está com o espectador, e não precisa de exegese aqui. As entrevistas de Carlos Castaneda com Dom Juan tiveram início quando ele era estudante de antropologia na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Temos uma dívida para com ele por sua paciência, sua coragem e perspicácia ao procurar e enfrentar o desafio de seu duplo aprendizado e por nos relatar os detalhes de suas experiências. Nesta obra ele demonstra a habilidade essencial da boa etnografia - a capacidade de ingressar num mundo estranho. Acredito que ele encontrou um caminho com o coração.
WALTER GOLDSCHMIDT
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